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segunda-feira, 3 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (I)

Vila Flor, Março de 1967.

Externato de Santa Luzia. Aula de Português com o Padre Cassiano Dimas Fais.
- Chega aqui Bernardino- diz ele!
Levanto-me da carteira dupla que dividia com o meu colega e amigo Amândio Tabuada Trigo, de Carvalho d´Egas, e subo o estrado colocando-me mesmo ao lado da secretária do professor que, entretanto, olhava completamente distraído para o bairro da Portela e para o Rossio que se viam perfeitamente através das rasgadas janelas daquela sala de aulas situada no segundo piso do edifício. Mantive-me assim por alguns minutos aguardando em silêncio. A cada minuto que passava o grau da minha impaciência aumentava exponencialmente. Este compasso de espera não é bom sinal - pensei para os meus botões.
Repentinamente ouço a sua voz grave e séria que me pergunta enquanto aponta com o dedo indicador para o meu caderno de capas pretas que ele tinha estado a ler: - Onde foste tu copiar esta estória? É que… não podes ter sido tu! É completamente impossível teres sido tu a escrever toda esta trama sozinho. Desde a construção das frases, ao enquadramento, ao contexto e mesmo o conteúdo do texto. Tudo está perfeito e bom de mais para um aluno cábula como tu!
Corei de vergonha e... de alegria. Sim. Fiquei completamente dividido. Mas o sentimento de revolta pela injustiça que me estava a ser praticada sobrepôs-se, naquele momento, à satisfação (e orgulho) pelo trabalho que tinha feito sozinho. Mesmo que o professor nunca acreditasse em mim e não me desse uma boa nota pelo menos ficava a satisfação interior de sentir que o trabalho que tinha efectuado com tanto prazer estava a ser avaliado desta forma tão positiva. Esta ambiguidade entre o prazer e a revolta criou em mim, naquele momento, um elevado estado de ansiedade.
- Eu pedi-vos que escrevessem uma história, um conto ou uma narrativa qualquer mas... que fossem completamente originais – continuou o professor.
- Mas o que eu escrevi é original! E meu, só meu! E escrevi-o com base nas narrativas que fui ouvindo aos soldados que regressaram do ultramar - respondi. 
- E então quando é que ouviste tudo isso?
- Sei lá... deixe cá ver... não foi só de uma vez... ouvi na Praça, na Avenida e também no velório do filho da senhora Laudomira “forneira” que mataram em Angola!
- Então (!?) e eles contaram-te tudo isso, a ti?... Assim, desta forma? - perguntou ele em tom irónico.
- Não me contaram especialmente a mim... eu fui ouvindo as conversas entre eles... partilhas de experiências de guerra vividas... uma e outra, aqui e ali, nesse dia e nos dias seguintes. Com base nessas histórias que fui ouvindo como intruso e à socapa acabei por construir e redigir todo esse enredo. Também com algumas coisas que inventei para condimentar tudo isso à minha maneira.

- Bom... bom... então lê lá o texto, que dizes ter escrito, em voz alta para os teus colegas o ouvirem bem. E virando-se para dois colegas meus que cochichavam entre si: "vocês ai atrás calem-se e ouçam com muita atenção pois irão ter de comentar no fim"!
(Continua)

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