Pretendo, despretensiosamente, divulgar aqui ideias, pensamentos, acontecimentos, imagens, músicas, vídeos e tudo aquilo que considere interessante, sem ferir susceptibilidades.

Falando de tudo e de nada... correndo o risco de falar demais para nada!


sábado, 15 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (IV)

Há casos como este que nos levam a pensar como seria bom termos o poder e a capacidade de alterar os rumos dos acontecimentos. Como seria bom podermos inverter tudo isso mas naquele instante de tensão em que um momento toma proporções enormes e a dimensão do universo é totalmente impossível.
É o nosso instinto de sobrevivência a pressentir e a antecipar que um milionésimo de segundo nos separa a vida da morte e acabamos por constactar que, de facto, quem vence é a besta que em nós existe. Toda a subtileza dum pensamento, toda a beleza dum poema, apenas o é se o eternizarmos no nosso conhecimento contínuo. Pelo contrário um momento destes, vivido assim desta forma tão intensa e extrema em termos emocionais fica, sem qualquer esforço ou intenção, para sempre impresso na nossa consciência mais profunda, na memória de tudo e de nós mesmos e será recordado e vivido em todos os instantes do resto da nossa vida; o único conforto é quando pensamos: sobrevivemos...
De modo que dei por mim a premir instintivamente o indicador. O estrondo soou e a bala atingindo-o em cheio no peito empurrou-o de encontro à árvore pela qual escorregou caindo depois para um dos lados. Corri para ele aflito, desorientado e surpreendido comigo próprio.
Apoiei-lhe a cabeça contra mim enquanto, sem saber porquê, lhe dei um pouco da água do meu cantil que apenas molharam os seus lábios grossos e ensanguentados.
Em combate já tinha abatido inimigos, já tinha visto morrer camaradas mesmo ao meu lado, eu próprio apresentava umas cicatrizes de estilhaços mal e porcamente curadas nas trincheiras à base de penicilina, mas nunca tinha passado um episódio que me tivesse chocado e mexido tanto comigo.

Vi como ele chorava e chorei também encostando a sua cabeça ao meu peito. Numa voz quase sussurrada disse-me: - Só não queria ser capturado... daqui a quinze dias... daqui a quinze dias... vou de licença... Vou ver os meus pais, os meus avós... a minha namorada...
Falava lentamente com pausas para tentar respirar, o que fazia com pequenos movimentos entrecortados em que apenas um dos lados do corpo se movia.

Calou-se. No seu peito, uma mancha escura e quente alastrava e arrefecia lentamente empapando-lhe o corpo. Senti como a vida lhe escapava a cada instante.

Olhou para mim. Os seus olhos escuros não me olhavam com ódio, apenas pareciam assustados e com pena do que lhe estava a acontecer.
De repente lembrei-me de Helena, a quem não via há tantos meses... e quase num murmúrio ele deixou escapar um pedido que apenas entendi pelo gesto de tirar a custo um envelope de dentro do blusão e que me entregou. Morreu em seguida.

Retirei, com as mãos a tremer e empapadas de sangue, do envelope uma carta dirigida aos pais e à namorada.


(Continua...)


Sem comentários:

Enviar um comentário