Pretendo, despretensiosamente, divulgar aqui ideias, pensamentos, acontecimentos, imagens, músicas, vídeos e tudo aquilo que considere interessante, sem ferir susceptibilidades.

Falando de tudo e de nada... correndo o risco de falar demais para nada!


domingo, 30 de março de 2014

Passeio do Grupo 5.com(e) à Serra da Freita (V)

Como vem sendo frequente - nem de propósito - estava numa mesa próxima um grupo de 5 (exactamente 5) jovens da nossa geração, com idades entre os 50 e os 55. 
Esclareça-se, porque a palavra “jovens” é ambígua, que se tratava de elementos do sexo feminino. Ficamos à distância estrategicamente conveniente: não demasiado próximos, para não nos inibir de falar à vontade; nem excessivamente longe para não se quebrar a corrente de interesse nem esbater o perfume do romantismo serôdio que nestas circunstâncias se estabelece. Pelo nosso traquejado faro concluímos que se tratava de um grupo de professoras. Provavelmente a conversa recaia sobre os testes a aplicar aos alunos ou sobre a má criação, tão em voga nos dias de hoje. Certamente já não se lembram das asneiras que faziam quando eram da idade deles. Ou falariam antes sobre as malfeitorias do governo, com alvo particular na vilipendiada classe dos professores?
Nisto aproximou-se alguém que tanto poderia ser o director da escola, como o homem das fotocópias. Mas a sua presença de pouco nos interessava, pelo que nem demos pela sua ausência, passado pouco tempo. Parece ter saído à sucapa, para não perturbar a nossa etérea contemplação.
O Bernardino ainda disse que noutros tempos não teria qualquer pejo em procurar uma aproximação, atrevendo-se temerariamente a meter conversa, confiante no sucesso da investida. Mas agora nem sequer ousou. Ficamo-nos por isso naquele tipo de conversa de velhos jarretas, como a raposa que, ao saber que não pode chegar às uvas, sabiamente limita-se a proferir o célebre: “não prestam. Estão verdes”.
Entretanto faziam-se horas para regressar a penates. Mas como o almoço tinha sido sóbrio e regrado, só o Rogério teve necessidade de procurar um “Toni” em Vale de Cambra, mas para uma visita rápida e descomprometida.

Adeus até ao meu regresso
Este grupo é mesmo muito organizado. Já está prometido e alinhavado com pormenores mais uma ida a Trás-os-Montes, logo que mude a hora. Quase só falta acertar a data. Mas mais, enquanto esse longínquo e ansiado dia não chega, não podemos perder tempo. Tratou-se já da próxima viagem, tendo-se mesmo fixado a data e seleccionado o local e a ementa: será em 7 de maio, novamente no Mira Freita, para voltarmos a saborear o cabrito serrano. Não é só pelo gosto de repetir: desejamos compartilhar estes inolvidáveis e saborosos momentos com as nossas consortes (com sorte), que sabemos estarem ansiosas por esse dia, há muito prometido e mais que por uma vez adiado.
“Uma vez sem exemplo”, ouvi eu no carro. E, como cronista fiel, não posso deixar de registar com precisão o que ouvi com estes que a terra há-de comer, mesmo que a expressão não traduza o verdadeiro sentimento de quem proferiu tão oportuna quão assertiva e assassina frase, embora sem lhe medir as consequências (obviamente, isto não pode sair daqui. Todos os cuidados são poucos e nestas coisas elas não perdoam).
Como não podia deixar de ser, o Mota ditou sábia sentença: “entretanto, e como o 7 de maio ainda vem longe, podemos no meio organizar um novo almoço só para nós, para desenferrujar a língua e não perder o ritmo” (a tradução é livre, pois a memória não registou a frase sic).
E sem mais nada de especial digno de registo acabamos por chegar a Valadares. Aí nos despedimos com um até já, já com saudades do futuro encontro no Mira Freita.

O secretário/cronista
Alexandre Ribeiro

Nota final: O vídeo já nem era necessário mas... "o prometido é devido"! Aqui fica, portanto. Vejam em ecrã inteiro para verem melhor.


sexta-feira, 28 de março de 2014

Passeio do Grupo 5.com(e) à Serra da Freita (IV)

Finalmente
Depois de uma descida até ao sopé da serra finalmente chegamos ao Mira Freita, em Felgueira, o ponto mais almejado desde a nossa saída, local onde iríamos confortar o estômago e proporcionar uma onda de requintados prazeres ao palato. Faltavam ainda 5 minutos para a hora marcada. O Mota programou a coisa com todo o rigor.
O restaurante é enorme, com espaço para quase 200 comensais, com amesendação simpática, a não merecer qualquer reparo. Como era meio da semana a afluência era escassa, deixando-nos à vontade para uma conversa descontraída, mesmo que porventura viesse a descambar para o desbragamento (o que obviamente não aconteceu, como é apanágio deste grupo).
Pelas bandeiras portuguesa e suíça ostentadas em frente ao edifício, que a brisa fazia ondular nos mastros em suaves movimentos, concluímos que o restaurante pertenceria a um português provavelmente ex-emigrante na Suíça que, soubemos, agora produzia vinho numa quinta em Sever do Vouga.
Comodamente instalados, passamos ao que interessaAbrimos as hostilidades começando
por uns tradicionais rojões de porco conservados no pingue, à antiga (que deixaram o Mota a calcorrear com nostalgia os caminhos e sabores da infância) acolitados por saborosa morcela tradicional caseira.
Para melhor aconchego mandamos vir um verde tinto da “Quinta do Patrão”, leve e saboroso, servido em pequenas canecas, o que obrigou o empregado a ter de proceder ao reabastecimento vezes sucessivas.
E veio então o cabrito, servido em assadeira de barro, com honras de verdadeiro campeão, profusamente ladeado de folhas de louro. Um cabritinho daqueles que não enganam: carne tenríssima, nacos suculentos, assadura no ponto, tempero com sapidez milimétrica. A quantidade - 3 doses para 5 galfarros - foi exactamente quanto baste: deu para ficar plenamente satisfeito, embora se mais viesse não iria sobrar nada, com os inconvenientes que se conhecem. Como acompanhamento veio um arroz malandrinho de carqueja, com as flores
da dita a boiar à superfície. Em complemento ou alternativa havia legumes, batata cozida e nabos.
A lista de sobremesas, não sendo extensa, era suficiente. Quantidades generosas, sabor agradável. Para culminar esta refeição de príncipes da idade média, o serviço foi concluído com os inevitáveis cafés e umas reconfortantes aguardentes para os apreciadores.
A conta não ofereceu surpresas: 20 euros por bico, englobando já uma algo pífia gratificação ao garçon, sempre prestimoso, amável, discreto e eficiente.

Como "sobremesa" extra assistiu-se, na varanda voltada a sul, a um animadíssimo despique em matraquilhos, que opôs uma equipa mista Porto/Benfica (Rogério e Bernardino) aos declarados portistas Jorge e Alexandre. Depois de um robusto 5-1 na primeira partida, favorável aos portistas Jorge/Alexandre, os adversários acabaram por ganhar terreno, nas três restantes partidas, sempre renhidas e disputadas até ao fim, registando-se um empate e dois resultados tangenciais favoráveis à dupla mista Rogério/Bernardino.

Vale de Cambra
Terminado o repasto havia que queimar os últimos cartuchos, antes de regressar a casa.
O que é bom acaba sempre depressa. Para não falar em outros exemplos (porventura de sabor mais intenso e excitante), recordo apenas a saudade dos adeptos de Mary Quant, quando diziam o mesmo: “o que é bom acaba depressa. Por isso é que a moda da minissaia durou tão pouco tempo”.
Descemos, assim, até Vale de Cambra, calmamente, para não apressar o tempo.
Aí preenchemos o habitual euromilhões, sempre com a expectativa e a promessa de que a próxima viagem seja de helicóptero, para saborear de forma condigna o jackpot que um dia, fatalmente, se atravessará no nosso caminho.
Ficamos numa acolhedora esplanada a conversar um pouco, enquanto ajudávamos a digestão com as águas da praxe.
(Continua...)

quarta-feira, 26 de março de 2014

Passeio do Grupo 5.com(e) à Serra da Freita (III)

Local das pedras parideiras
Avançamos talvez uns dois quilómetros, a caminho do local das famosas pedras parideiras, passando ao lado de uma pitoresca aldeia chamada Albergaria da Serra.
Mais para meter conversa que para pedir informação (a placa não deixava dúvidas), interpelamos um habitante local que nos apareceu ao caminho e que nos confirmou: Vão bem. As pedras parideiras são já ali. Mas nesta época não estão a parir nada.
Tal como a maior parte dos consultores de empresas, este aldeão não nos disse nada que já não soubéssemos. Mas é sempre reconfortante encontrar alguém que nos garanta que estamos no caminho certo e que sabemos como são as coisas. E lá fomos nós, agora muito mais serenos e confiantes, a caminho do sítio das pedras parideiras.
Daqui observa-se, sob outro ângulo, a frecha da Mizarela em toda a sua plenitude e imponência, em plácida e exuberante nudez da fenda e das rochas (granito e xisto) que a marginam. As águas revoltas deslizam em tropel imparável, descendo em turbilhão pelas descarnadas rochas da fenda, (ou pela fenda das rochas?) apressadas e ofegantes, ansiosas por chegar ao êxtase e à calmaria, no sopé do monte, onde, enfim, podem repousar e retemperar energias após tão alucinante viagem (que é que isto me faz lembrar?).
Voltemos às pedras parideiras, que são um fenómeno geológico raríssimo. No caso da serra da Freita são mesmo um caso único no mundo no que respeita a este tipo de granito. 
Cientificamente o fenómeno é assim:trata-se de uns afloramentos rochosos onde os
componentes da rocha se agrupam em vez de se distribuírem de forma mais ou menos uniforme por toda a rocha, formando nódulos que se destacam claramente pela sua cor escura. Ao fim de milhares (ou milhões) de anos a erosão, as condições de tempo (diferença térmicas e humidade) fazem estalar a rocha, que larga os seus rebentos. Daí a designação de pedras parideiras. O período de gestação é muito longo, o parto é muito demorado.
Por aqui os paparazzi são muitos, embora não se escondam atrás das árvores, nem precisem de binóculos para ver ao longe, nem de escadas para se sobreporem às sebes. Tal como os outros, estão sempre na expectativa de ver a rocha parir (os outros ficam à espera que a vedeta tire o soutien e deixe à mostra os seios nus, momento ansiado e que justifica tantas solitárias e desesperantes horas de espera, mas que afinal é a fonte dos seus proventos). Mas ninguém pode apressar este parto e transformá-lo num acontecimento social, com direito a fotos e filmes que certamente iriam receber muitos likes no facebook.
Mesmo à face da estrada vemos os afloramentos graníticos (não estou a inventar nem a fazer literatura. É assim que reza o panfleto), prenhes de pedras parideiras, na maior parte
dos casos com os partos concluídos e com os filhotes já muito longe da casa paterna. Mas ainda há pedras com a gestação incompleta e sem data marcada para o parto, apesar dos meios tecnológicos de que hoje se dispõe para avaliar a data destes eventos. Neste aspecto, como em muitos outros, a natureza não se compadece com a pressa ou com os desejos dos homens. Há-de ser quando Deus quiser, dirão os crentes.
Mas para outras coisas (como a larica) a natureza pode apressar o “parto”. E para nos lembrar as regras lá estava o co-piloto Mota, novamente a carregar a fundo no “acelerador”: “Temos de nos despachar. É quase uma hora e já devíamos estar a chegar ao restaurante.”
“Ok Mota. Espera um pouco que já vamos”. E, sem pressas, ainda nos demoramos o tempo suficiente para comprovar que o Centro de Interpretação – Casa das Pedras Parideiras é
uma estrutura muito bem organizada e dotada em meios técnicos e humanos, merecedora de todo o apoio e da gratidão de quem gosta de conhecer estes interessantes fenómenos com o máximo de rigor e cientificidade. Aliás, as próprias rochas podem ser visitadas em excelentes condições de conforto, seguindo por uma passerelle tipo passadiço, em madeira, que circunda a principal afloração e permite ver e tocar directamente as rochas. Mas posso garantir que será infrutífera qualquer tentativa de provocar um parto. 
As entidades locais e a Arouca Geopark merecem os parabéns.
(Continua...)

segunda-feira, 24 de março de 2014

Passeio do Grupo 5.com(e) à Serra da Freita (II)

Santuário da Senhora da Laje
Já em plena serra da Freita, perto do lugar de Merujal, ao passar no recinto da Senhora da Laje, uma construção do ano 1680, descemos ao adro para tirar umas fotos para a posteridade. Mas o local era ermo, sem vivalma e sem qualquer casa num raio de muitas centenas de metros. Só uma igrejinha, carinhosamente intitulada “santuário”, com um típico coreto e um minúsculo cemitério mesmo ao lado, a lembrar o Portugal dos Pequenitos. Sendo, por isso, um local mal frequentado e pouco recomendável, optamos por dar meia volta e voltamos a subir à estrada.Aí, num largo terreiro rodeado de cruzeiros, o Bernardino fez o gosto ao dedo, premindo o gatilho a torto e a direito. 

Nem o Mota escapou ao seu zeloso profissionalismo, mesmo quando estava meio escondido atrás de um contentor de lixo a dar vazão, com inquestionável satisfação, às suas mais prementes e básicas necessidades fisiológicas.
Assistimos então a um momento mágico, de arte pura e sublime. Para a posteridade posou o Jorge, servindo de modelo para uma soberba foto que pode ser apreciada na magnífica reportagem fotográfica do Bernardino, que regista para sempre (agora no digital e não já no celulóide) os fugazes mas inolvidáveis momentos destas visitas turístico-gastronómicas.
Recuando 1981 anos, o Jorge assumiu com todo o rigor a pose do Cristo na cruz, com as mãos estendidas na horizontal cravados na travessa, cabeça pendida em conformada resignação, com a perna direita artisticamente flectida, e com os pés sobrepostos para puderem ser fixados à base da cruz com um único cravo.
Como 1981 anos? Perguntarão os mais distraídos. Pois se estamos em 2014 e Ele morreu com 33 anos, é só fazer as contas e ver se não tenho razão! 

Frecha da Mizarela
Daqui em diante o caminho da serra estava desbravado. E lá fomos sem problemas desembocar (salvo seja) na frecha da Mizarela.
Frecha de Quem? perguntará qualquer inocente e incauto desconhecedor da enorme riqueza do património natural de Portugal, que só merece o nosso mais desdenhoso e reprovador olhar.
A frecha da Mizarela é um geossítio (quem não souber o que quer dizer este palavrão consulte o dicionário ou o roteiro turístico editado pela Arouca Geopark) que é tão somente a mais alta queda de água em todo o território continental português.
Apresenta um desnível superior a 70 metros, praticamente na vertical, com um caudal de vários milhares de litros por minuto (contas feitas de cabeça, em menos de um minuto).
Apreciada a frecha, mirada e fotografada pelo Bernardino em vários ângulos, de modo a não deixar dúvidas nem mistérios por descobrir, entra em acção o co-piloto Mota, carregando agora no “acelerador” do relógio: “Temos de nos despachar. O almoço está marcado para a uma hora e ainda temos de passar nas pedras parideiras.”
A Mizarela é um belíssimo lugar, com meia dúzia de casas serranas de muito bom aspecto, circundadas de “relvados” magníficos. Os telhados de colmo já desapareceram de cena, substituídos pela moderna telha-sanduíche. Ar puro, silêncio apenas cortado pelo fragor das águas da cascata. Mas tudo fechado, sem ninguém à vista desarmada. Até o restaurante tinha as portas trancadas. E no que respeita a cafés, nem sombras. 
Tem paciência, Jorge. Ainda não é agora. “Aguenta, aguenta”, como diria o Ulrich. Se fosse outra coisa seria bem mais doloroso. 
(Continua...)

sábado, 22 de março de 2014

Passeio do Grupo 5.com(e) à Serra da Freita (I)

Nota Prévia:
Esta é mais uma crónica de Alexandre Ribeiro.

Ele deixa aqui  (para memória futura) uma descrição "fotográfica" e humorística 
de mais um passeio turístico, científico e gastronómico. Desta vez à Serra da Freita.

No último episódio desta crónica será publicado (como também é habitual) o vídeo da viagem. 

19 de Março de 2014 – Dia do Pai
Por uma feliz coincidência o Grupo 5.com(e) escolheu esta data marcante para se deslocar à serra da Freita, preenchendo a cheio mais um espaço no seu já interessantíssimo roteiro turístico, em visita de desfrute ao nosso riquíssimo património geológico e, sobretudo, gastronómico.
O dia apresentou um sol radioso, com temperatura amena, feliz prenúncio da ansiada primavera, parecendo feito de encomenda para ir ao encontro dos nossos objectivos. A concentração foi em Valadares, no Penedo, onde à hora marcada compareceram o Jorge, o Bernardino e o Alexandre. O Mota, como vai sendo habitual, apareceu de “véspera” e já há muito esperava, impaciente, na pastelaria.
O Rogério juntou-se depois ao grupo. E lá arrancamos, tendo como destino a Serra da Freita. E o restaurante Mira Freita, porra! Não podemos lembrar o acessório e esquecer o essencial.
O percurso e o papel importante do co-piloto
O Alexandre era o condutor, mas contava com a preciosa e exigente cooperação de “experiente” co-piloto, o Mota: “Nada de pressa. Não precisamos de ir a mais de 80”.
O Mota passava o tempo a accionar o “travão de boca”: “Cuidado nessa curva. Aqui não podemos ir a mais de 60”.
A certa altura, em plena auto-estrada e numa descida, o Rogério perguntou se o motor ia desligado para poupar combustível: “Não, mas vamos a 110 kms/hora, com o piloto automático ligado. Por isso é que parece que estamos parados”.
“Vamos assim muito bem”, atalha logo o Mota, que só se chateou por o Alexandre não ter saído em S. João da Madeira. “Vamos ter de fazer muito mais quilómetros. Devíamos ter saído onde eu disse. Eu bem avisei (a quem é que eu já ouvi isto?). Agora já não dá para ir para trás. Não me quiseste dar ouvidos! Eu é que conheço esta zona. Trabalhei aqui muitos anos”.
Afinal a saída da auto-estrada em Vale de Cambra ficava mesmo a 2 passos do ponto onde teríamos de passar. Ainda poupamos 10 a 15 minutos.
E, não foi preciso ligar a porcaria do GPS do Rogério (que, para variar, não funcionava direito) para se chegar à Freita sem problemas. Aliás, nada nos garantia que com aquele GPS e com aquele técnico não fôssemos antes encaminhados para Aveiro ou para o Porto (já não era a primeira vez que algo de semelhante nos acontecia).
O caminho estava bem sinalizado e fomos directos ao destino sem quaisquer problemas.
Mas nem 5 pares de olhos nem o GPS nos indicaram qualquer café à face da estrada, onde o Jorge pudesse matar a traça, que desde a auto-estrada lhe vinha corroendo as entranhas. Vícios.
(Continua...)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (VI)

Ao acabar de ler o longo texto fiquei muito mais tranquilo mas verifiquei, com espanto, que alguns dos meus colegas tinham os olhos cheios de lágrimas. As colegas das primeiras carteiras olhavam-me com admiração e com um olhar meigo e terno… pelo menos eu senti-o dessa forma.
Nessa altura compreendi também uma coisa muito importante: gosto de escrever e posso fazê-lo. Felizmente é um gosto que não exige senão tempo, uma caneta ou um lápis e papel. Ora, felizmente, eu tinha tudo isso. Portanto tinha a sorte de gostar do que gostava e daquilo que tinha! Senti-me feliz e por isso pensei: que me importa aquilo que o Padre Cassiano pensa? Até lhe estou agradecido por me ter dado a oportunidade de me dar conta de tudo isso.

Agora, e assim à distância de 45 anos, até o desculpo e reconheço que nessa época os professores ainda não tinham a preocupação e o interesse pela melhoria da auto-estima e do auto-conceito como forma de estimular o sucesso escolar dos seus alunos. De facto, o estudo da auto-estima em contexto escolar, sobretudo na sua interligação com o aproveitamento dos alunos com capacidades cognitivas só assume particular importância muitos anos mais tarde.
O professor, embora Padre de profissão e (talvez) vocação, não podia ter - nessa época - conhecimentos de psicologia do desenvolvimento e educação de crianças e jovens adolescentes para saber que a estabilidade emocional e o auto-conceito dos alunos contribuem decisivamente para a melhoria da sua qualidade de vida. De facto, são os alunos que recebem estímulos afectivos positivos a esse nível, em casa e nas salas de aula, que apresentam níveis de rendimento escolar mais elevados, quando comparados com alunos que não recebem qualquer estímulo ou com aqueles que, por qualquer motivo, recebem estímulos contrários e que lhes baixam a auto-estima como aconteceu comigo nesta situação concreta e mesmo noutras que agora não vêm ao caso.

Nesse dia, e nessa aula de Português, o melhor estímulo afectivo positivo que obtive foi captado de mim para mim, cá do fundo do meu interior, ao dar-me conta de que também era capaz de fazer algo positivo e competente. E... incrivelmente também vindo do exterior, mas não do professor como seria suposto e desejável mas sim das lágrimas que vi em algumas das minhas colegas e, sobretudo, do meu colega e amigo Tino Navarro, quando da sua carteira lá do fundo sala se levantou e disse alto e bom som: Senhor Padre Cassiano eu também ouvi o “marancha” contar esta história aos meus irmãos mais velhos!!!

Nota final: Este texto, tão polémico na altura, foi escrito por mim na sala de estudo do Externato de Santa Luzia, em Vila Flor. Essa sala de estudo era controlada e vigiada pela nossa professora de Moral a quem chamávamos a "Casqueiro", por ter um trato muito austero e rigoroso. Escrevi-o enquanto ela se colocava estrategicamente mesmo a meu lado por forma a impedir, com o seu corpo enorme, o meu olhar na direcção da minha primeira namorada que tinha 13 anos e, por incrível que possa parecer, se chamava: Helena.
      

terça-feira, 18 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (V)

"- Queridos pais - começava assim a carta.
Espero que esteja tudo bem e que esta carta os vá encontrar de boa saúde.
Estou contentíssimo. Foi antecipado o calendário do nosso batalhão e daqui a quinze dias vou gozar a minha primeira licença de uma semana. Anseio tanto por vos ver, por estar convosco…
Por aqui as coisas têm estado mais ou menos difíceis, os “tugas” avançam em força mas estamos aguentando e em breve iremos receber reforços.
O nosso comandante falou ontem às tropas e disse que nos estávamos a defender muito bem e com muita bravura. As nossas forças estão a preparar um contra golpe, que nos fará progredir em todas as frentes e que a guerra tenderá a acabar com o empenho de todos. Que iremos sair vitoriosos.
Já lhes disse na carta anterior que o posto onde estou agora é relativamente sossegado e seguro, por isso nada de preocupações.
Eu estou bem graças a Deus, embora cheio de saudades de todos. 
Digam à Helena que não fique em cuidados por não lhe escrever desta vez, pois daqui a dias estaremos juntos se Deus quiser.
Digam-lhe que a amo muito e que anseio por ela e pelo dia do nosso casamento.
Beijos a todos e renovadas saudades.
Vosso filho que vos adora".

Dobrei a carta e voltei a colocá-la no envelope. Um sentimento de sacrilégio tomou-me todos os sentidos, e chorei como há muito o não fazia.

Helena... A namorada dele também se chamava Helena!

Cumpri as rotinas: certifiquei-me da sua identificação. Ao verificar-lhe os bolsos retirei vários objectos mas o que mais me prendeu a atenção foi uma fotografia. A fotografia da sua Helena: um sorriso lindo e luminoso, cabelos encarapinhados e olhos escuros como os seus. Senti o coração parar com o sentimento de arrependimento que tomou conta de mim.

Mas... foi ao fazer a operação de segurança da arma que fiquei no estado de destroçado, desprezível até, em que me encontro agora: o carregador não tinha já munições, a câmara estava vazia.

A arma... a arma estava descarregada... meu Deus...

(Continua...)

sábado, 15 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (IV)

Há casos como este que nos levam a pensar como seria bom termos o poder e a capacidade de alterar os rumos dos acontecimentos. Como seria bom podermos inverter tudo isso mas naquele instante de tensão em que um momento toma proporções enormes e a dimensão do universo é totalmente impossível.
É o nosso instinto de sobrevivência a pressentir e a antecipar que um milionésimo de segundo nos separa a vida da morte e acabamos por constactar que, de facto, quem vence é a besta que em nós existe. Toda a subtileza dum pensamento, toda a beleza dum poema, apenas o é se o eternizarmos no nosso conhecimento contínuo. Pelo contrário um momento destes, vivido assim desta forma tão intensa e extrema em termos emocionais fica, sem qualquer esforço ou intenção, para sempre impresso na nossa consciência mais profunda, na memória de tudo e de nós mesmos e será recordado e vivido em todos os instantes do resto da nossa vida; o único conforto é quando pensamos: sobrevivemos...
De modo que dei por mim a premir instintivamente o indicador. O estrondo soou e a bala atingindo-o em cheio no peito empurrou-o de encontro à árvore pela qual escorregou caindo depois para um dos lados. Corri para ele aflito, desorientado e surpreendido comigo próprio.
Apoiei-lhe a cabeça contra mim enquanto, sem saber porquê, lhe dei um pouco da água do meu cantil que apenas molharam os seus lábios grossos e ensanguentados.
Em combate já tinha abatido inimigos, já tinha visto morrer camaradas mesmo ao meu lado, eu próprio apresentava umas cicatrizes de estilhaços mal e porcamente curadas nas trincheiras à base de penicilina, mas nunca tinha passado um episódio que me tivesse chocado e mexido tanto comigo.

Vi como ele chorava e chorei também encostando a sua cabeça ao meu peito. Numa voz quase sussurrada disse-me: - Só não queria ser capturado... daqui a quinze dias... daqui a quinze dias... vou de licença... Vou ver os meus pais, os meus avós... a minha namorada...
Falava lentamente com pausas para tentar respirar, o que fazia com pequenos movimentos entrecortados em que apenas um dos lados do corpo se movia.

Calou-se. No seu peito, uma mancha escura e quente alastrava e arrefecia lentamente empapando-lhe o corpo. Senti como a vida lhe escapava a cada instante.

Olhou para mim. Os seus olhos escuros não me olhavam com ódio, apenas pareciam assustados e com pena do que lhe estava a acontecer.
De repente lembrei-me de Helena, a quem não via há tantos meses... e quase num murmúrio ele deixou escapar um pedido que apenas entendi pelo gesto de tirar a custo um envelope de dentro do blusão e que me entregou. Morreu em seguida.

Retirei, com as mãos a tremer e empapadas de sangue, do envelope uma carta dirigida aos pais e à namorada.


(Continua...)


quinta-feira, 13 de março de 2014

Há dias em que me sinto um passarinho!

Sócrates, Relvas, Portas, Coelhos e outros animais desta selva...


Há dias em que (mesmo que queiras) não os esqueces! 
Nem as promessas destes jotinhas tão "ternurentos" 
que fazem ao eleitorado tantas preces...

E... no “poleiro” do poder logo esquecem
esse ardor da campanha no baú dos esquecimentos. 

Passam enfim a olhar para ti com desdém
na vida passas a ser um empecilho…
porque será que a vida tem 
tantos filhos da (…) mãe,
a quem a mãe chama filho?

terça-feira, 11 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (III)

No ninho, formado por um pequeno desaterro escavado até à altura de um homem de estatura média, tinham sido colocados sacos de pedras e de areia. Havia três caixas de munições empilhadas a um canto, duas peças pesadas caídas assim como algumas ligaduras espalhadas pelo chão. Num dos lados estava um corpo de um soldado inimigo ainda agarrado a um dos morteiros, que tinha sido atingido quase em cheio. Os sacos desse lado do ninho estavam deslocados e rebentados com o conteúdo espalhado à sua volta.

Ainda no decorrer da operação do dia anterior não pude deixar de reparar também como, no chão mole devido à chuva miudinha que caíra na noite anterior, umas pegadas de botas levavam a direcção do bosque na encosta que agora ficava por trás das nossas linhas. Segui as marcas no solo e, ainda antes de entrar no arvoredo, umas manchas de sangue num arbusto certificaram-me de que estava por ali alguém ferido. Talvez devido a estilhaços aquando da queda do morteiro que atingira o seu camarada. Digo eu, não sei. Ou talvez ainda antes, atingido por uma bala e na iminência da sorte do combate lhe ser desfavorável, tivessem feito com que ele se retirasse na esperança de atingir um local onde se sentisse mais seguro.
Fui avançando devagarinho, com extremo cuidado e todas as cautelas, a adrenalina a ferver nas veias, abrigando-me em cada árvore e em cada arbusto. Foi quando inesperadamente o vi… Quase de caras!
Senti o sangue gelar!
Imóvel e encostado a um tronco, a sangrar, debilitado, estava como que esperando por mim. Nem dera quase por ele, poderia perfeitamente ter-me abatido, mas não...
Por detrás duma expressão assustada, de olhos escuros e a parte branca enorme e a brilhar, estava o que era ainda um jovem. Deve ter uns 16 ou 17 anos! - pensei. Apresentava um ar de cansaço e segurava a arma apontada na minha direcção com as duas mãos junto à cintura e a coronha apoiada na árvore onde se encostara. 
Ordenou-me num português bantu para largar a minha. 
Respondi-lhe que estava detido, que as nossas forças tinham tomado as suas posições e que agora era meu prisioneiro.
Umas lágrimas espreitaram-lhe aos olhos ao mesmo tempo que denunciava na respiração ofegante o tremor que lhe tomava o corpo. Eu estava numa ansiedade enorme e em grande tensão mas consegui dizer-lhe para ter calma e que não lhe íamos fazer mal. Que iria ser respeitado, alimentado e protegido como prisioneiro de guerra. Por um momento senti um alívio da tensão quando ele baixou a metralhadora e o olhar num gesto que me pareceu de rendição.

Avancei e foi então quando se deu o desfecho inesperado.

Dando-se conta de que me aproximava, levantou novamente a cabeça e voltou a apontar a arma, abrindo muito os olhos enquanto subia os braços para uma posição de ponto de mira e de dedo no gatilho. A boca a abrir-se como que a preparar-se para gritar muito alto…
(Continua...)

domingo, 9 de março de 2014

Ontem fui correr!

Ah… que bom! Como me senti bem em termos anímicos a percorrer os 12 quilómetros que separam o bar Atlântico, na praia de Valadares, até ao Bico do Cabedelo! Já fisicamente não poderei dizer o mesmo tendo em conta que vinha de um longo interregno nos treinos. Não corria, nem treinava, desde dia o 15 de Dezembro quando participei na São Silvestre do Porto 2013. Nesse dia fiz os 10 Kms no tempo líquido de 57 minutos e 53 segundos, o que para um cota de 60 anos não foi nada mau.

Voltando ao treino de ontem. Normalmente enquanto corro também penso. Tenho a mania de ir pensando nisto e naquilo, no tempo, no mar que me acompanha do lado esquerdo ou do lado direito conforme o sentido em que me desloco, na política, nestes políticos jotinhas que temos, no futebol, nos amigos (a maioria doentes do FCP), na família etc. etc.  

Ontem os meus pensamentos andaram mais ou menos a navegar assim:
Já não estudo. Já não trabalho. Apenas vou dirigindo os conhecimentos e a ocupação do meu tempo. Será pouco? Talvez. Mas às vezes dá cá um trabalho do... E sorri para mim próprio. Ou de mim? 

E continuei a pensar:
Na adolescência temos a mania que sabemos tudo;
Na casa dos vinte temos a certeza absoluta que sabemos tudo;
Na dos trinta começamos a ter uma ligeira dúvida sobre se sabemos tudo (menos os jotinhas);
Na casa dos quarenta apercebemo-nos de que se calhar não sabemos tudo (menos os jotinhas);
Aos cinquenta apercebemo-nos que não sabemos nada (menos os jotinhas);
Aos sessenta começamos a aprender (menos os jotinhas) e é o que estou a fazer.
E sorri também de mim para mim.

Por isso estou “autorizado” a pensar: O ano de 2014 vai ser terrível, com estes jotinhas que nos governam não podemos esperar grande coisa... não é verdade?
De facto, diminuir o vencimento dos funcionários públicos, as pensões e aumentar a ADSE, num sistema que está fechado, é (ou deveria ser) um crime.
Aqui neste ponto do meu pensamento cruzei-me com a Carmo da farmácia que me sorriu toda simpática e com o seu olhar cúmplice pareceu dizer-me: "Força amigo! Dá cabo aí desse colesterol que, como temos visto na farmácia, anda com tendências para subir de valor...". Bom, ela de facto, não o disse mas eu interpretei pela expressão do seu olhar que era isso que ela estava a pensar. 

Retomei o pensamento anterior e pensei: a culpa, no limite, é do estado português que transferiu abusivamente os fundos de pensões para equilibrarem o défice e continua a pagar pensões milionárias a bancários e a ex-políticos que vão passando pelas empresas que vivem à custa dos negócios com o estado. E quem paga é... bom aqui parei... já pensei vezes de mais nesta merda.

Ao passar em frente ao Restaurante Casa Branca, para além de pensar que foi aqui que fizemos a boda do meu casamento há 34 anos ainda desabafei para mim: Parece que foi ontem! Mas… é muito tempo, porra! 

No regresso, e ao passar pelo Ar d´Mar-Bar Esplanada, em Canide Norte, lembrei-me do meu cunhado falecido num brutal acidente de viação e do tempo, já longínquo, em que ele abriu e inaugurou este bar. O entusiasmo e a esperança no futuro com que ele o fez!!!
Aqui apeteceu-me ficar indignado. Pois, agora tenho tempo e acho que vale a pena indignar-me com tudo isto. É injusto morrer-se aos 35 anos e deixar um filho de cinco anos.

E... como fiquei mal disposto, não me importei de regressar ao tema anterior, que continua a indignar-me, e muito. Não sou jotinha, também não sou político, graças a Deus, e não tenho soluções para o problema português mas o que me apetece é dizer (neste caso pensar) mais uma vez: este governo é o cobardolas do costume, bate nos mais fracos, e naqueles que já não se podem defender nem sequer a fazer uma grevezita. Estes cobardolas esquecem-se que as reformas nos são devidas, descontámos mensalmente para elas ao longo de toda uma carreira; não são um bónus nem um agrado que nos fazem; é a verba que todos nós poupámos para o efeito. Até dá a ideia que esses governantes de merda aplicaram as nossas poupanças de reforma na bolsa e... perderam. O que eu acho é que, com isso, nos roubam as nossas reformas. Se, porém, as aplicaram indevidamente e a coisa correu mal, então prendam quem o fez, eram dinheiros que não lhes pertenciam, não tinham nada que lhes mexer. Ouviram???

E pronto passei de novo em frente à esplanada do Bar Atlântico e cheguei finalmente ao carro, estacionado próximo daí, onde a Amélia já me esperava. Abro a porta, sento-me e desabafo. Uff, cheguei!

sexta-feira, 7 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (II)

Cheio de vergonha, e com algum embargo na voz pelo nervosismo, passei então a ler o pequeno conto que escrevi baseado em grande parte nos acontecimentos contados, como sendo verídicos, pelo soldado António Branco ("marancha") e pelos seus camaradas de pelotão que vieram assistir ao funeral de um deles morto em combate na guerra colonial: 
O meu diário
Neste preciso instante em que escrevo estas palavras, que me servem de desabafo reconfortante, corro o sério risco de sofrer um castigo militar ou, no limite, de ser abatido por um “turra” inimigo. De facto, devia era estar mais concentrado na minha missão. Escrever é uma actividade que me apaixona mas que distrai, para o bem e para o mal, os meus sentidos. Ao escrever vou desabafando para diminuir o medo e os níveis de ansiedade mas... aumento os riscos de não cumprir com rigor o desempenho da minha missão.
São cinco e um quarto da manhã e há uma hora e quinze minutos que entrei no meu turno de vigilância aos sentinelas. Infelizmente já encontrei um soldado no seu posto a dormir de pé encostado à parede de terra e abraçado à sua G3! Vou ter de elaborar o auto desta ocorrência pois com a guerra não se brinca nem se pode facilitar.
Eu é que ainda não consegui conciliar um só minuto de sono durante toda a noite, mesmo antes de entrar de serviço.
À minha frente apenas vejo uns olhos castanhos que me perseguem por todo o lado. São iguais aos de Helena, a minha querida mulher que se encontra lá longe no continente e em Vila Flor, e com quem me casei quinze dias antes de ser enviado para a frente e entrar em combate.

Enquanto penso nela faço uma pequena pausa para perscrutar as trevas que uma lua em quarto crescente por trás dum céu esfarrapado de nuvens negras mal consegue iluminar. De repente pareceu-me ter ouvido um estampido mas afinal era apenas um pássaro preto (talvez um mocho) que, após ter capturado uma presa, passou a rasar o meu capacete rumo à mata situada no morro à minha retaguarda.

Ontem, ainda no refeitório enquanto tomávamos o pequeno-almoço, recebemos ordens para avançar em direcção às trincheiras que agora ocupamos. Durante o avanço tínhamos que tomar um ninho de metralhadoras que estava instalado no cume duma pequena elevação do terreno a partir de onde se dominava todo o vale. Uma cobertura de fogo de morteiro abriu alas e permitiu o nosso avanço mais ou menos seguro. Conseguimos esta nova posição sem qualquer baixa nem feridos da nossa parte.
Após a relativamente rápida tomada deste ponto de abrigo, passámos a fustigar as trincheiras inimigas que não tiveram outro remédio senão bater em retirada, o que nos facilitou o assalto final às suas posições anteriores.
O meu pelotão ficou com a incumbência de limpar o terreno, capturando armamento, anulando elementos inimigos, detendo-os com ordens de serem abatidos em caso de resistência...

(Continua...)

quarta-feira, 5 de março de 2014

Chove. Mais uma tarde de chuva. Já é demais! – digo eu.

Olha a novidade! Então não estamos no Inverno (?) e em tempo de chuva!!??- responde, de pronto, a Amélia no seu feitio rezingão.

Para serenar leio. Estou a ler o romance “Ernestina”, de J. Rentes de Carvalho, que a minha filha me ofereceu pelo meu aniversário. Nesta espécie de autobiografia o escritor viaja por terras de Trás-os-Montes, descrevendo paisagens, lugares, localidades e, sobretudo, o carácter das gentes transmontanas. Faz assim um retrato escrito num estilo directo e por vezes irónico de lugares e de um povo que tanto me diz.
Faço um intervalo. Provavelmente inspirado por esta leitura e, imbuído por esse espírito saudosista que por vezes me trai, fui rebuscar nas minhas memórias longínquas, dias também chuvosos e frios de outrora. Recordo esses dias e dias seguidos de chuva intensa que via cair encostado à porta de entrada do “soto”, como o meu pai chamava à pequena mercearia de aldeia que abriu num dos compartimentos da casa onde todos vivíamos. Essa porta dava para a rua principal da aldeia que fazia a ligação do Largo da Lameira até ao Largo do Eitão, os pontos nevrálgicos da aldeia. O primeiro porque ficava mesmo ao lado da Igreja (e da nossa casa), o segundo porque era aí que as pessoas socializavam, quer nas tabernas, quer ao lado e em frente da casa da escola.
Chamavam-lhe a rua Larga mas, naquele ponto em frente da nossa casa, tornava-se bastante estreita e muito inclinada pelo que nestes dias de chuva intensa mais parecia um pequeno ribeiro por onde eu via passar com admiração, espanto e algum temor, arrastados pela força da corrente, paus, lama, pedras a rolar, folhas e enormes quantidades de dejectos que os animais depositavam pelos caminhos e que normalmente eram apanhados à mão para servirem de fertilizante natural.
Ao fim de muitos dias de chuva sem parar vinham invariavelmente os prejuízos. Os charcos e ribeiros que extravasavam, os valados que ruíam, as bolsas de água acumuladas no subsolo que rebentavam e arrastavam tudo por onde passasse a violenta enxurrada, árvores que caíam, calhaus enormes que se desprendiam e rolavam encosta abaixo… Era tempo de esvaziar os palheiros para alimentar os animais e de consumir os proveitos acumulados no verão.
Mas de cheias não ouvíamos falar... Lá na minha terra onde vivi até aos sete anos de idade, situada nos confins do mundo, no lugar de Pinhal do Douro, Freguesia de Vilarinho da Castanheira, Concelho de Carrazeda de Ansiães, não havia disso e as notícias não se difundiam na hora como actualmente. Mesmo assim, havia um cuidado extremo com a limpeza dos cursos de água, nalguns casos por receio da força da lei imposta pelos então existentes (e sempre presentes) Guarda-Rios, e noutros em geral porque havia o sentimento de zelo que impelia as pessoas a se prevenirem e a demonstrarem um respeito absoluto pelas forças da natureza. Era inconcebível ousar obstruir os cursos naturais da água ou opor-se ao estabelecimento de pequenas valas por onde se desviavam as águas pluviais para não danificarem os caminhos, únicas vias de comunicação que existiam na época e de vital importância para as populações.

Contudo, os tempos mudaram e, como disse o poeta, as vontades também. A memória é curta e cometem-se atropelos ambientais de bradar aos céus. São esses atropelos que provocam muitos dos malefícios que ultimamente se têm feito sentir como consequência das fortes chuvadas.
Estranho é apenas o facto de em tão pouco tempo, mesmo tendo em conta a intensidade da chuva, do vento e das marés altíssimas, ocorrerem enchentes com tanta frequência nas margens dos rios e tantos estragos na orla marítima como as que se verificaram ultimamente.

E pronto… mais uma tarde de segunda-feira, deste início de Março, assim passada entre estas quatro paredes e com esta vontade, que por vezes me assalta, de baixar a persiana, apagar a luz e mergulhar no “baú” das minhas recordações: retornar à infância cada vez mais longínqua, rever a luz do dia como uma esperança que renasce, olhar o horizonte e sentir vontade de o ultrapassar para ver que vidas existiam do outro lado, percorrer caminhos que já se apagaram, relembrar amigos nunca mais encontrados, familiares já desaparecidos, paisagens alteradas… tanta coisa que parece nada mas que era toda uma vida cheia de ilusão, de fé e de confiança…

segunda-feira, 3 de março de 2014

Excerto do diário de estudante (I)

Vila Flor, Março de 1967.

Externato de Santa Luzia. Aula de Português com o Padre Cassiano Dimas Fais.
- Chega aqui Bernardino- diz ele!
Levanto-me da carteira dupla que dividia com o meu colega e amigo Amândio Tabuada Trigo, de Carvalho d´Egas, e subo o estrado colocando-me mesmo ao lado da secretária do professor que, entretanto, olhava completamente distraído para o bairro da Portela e para o Rossio que se viam perfeitamente através das rasgadas janelas daquela sala de aulas situada no segundo piso do edifício. Mantive-me assim por alguns minutos aguardando em silêncio. A cada minuto que passava o grau da minha impaciência aumentava exponencialmente. Este compasso de espera não é bom sinal - pensei para os meus botões.
Repentinamente ouço a sua voz grave e séria que me pergunta enquanto aponta com o dedo indicador para o meu caderno de capas pretas que ele tinha estado a ler: - Onde foste tu copiar esta estória? É que… não podes ter sido tu! É completamente impossível teres sido tu a escrever toda esta trama sozinho. Desde a construção das frases, ao enquadramento, ao contexto e mesmo o conteúdo do texto. Tudo está perfeito e bom de mais para um aluno cábula como tu!
Corei de vergonha e... de alegria. Sim. Fiquei completamente dividido. Mas o sentimento de revolta pela injustiça que me estava a ser praticada sobrepôs-se, naquele momento, à satisfação (e orgulho) pelo trabalho que tinha feito sozinho. Mesmo que o professor nunca acreditasse em mim e não me desse uma boa nota pelo menos ficava a satisfação interior de sentir que o trabalho que tinha efectuado com tanto prazer estava a ser avaliado desta forma tão positiva. Esta ambiguidade entre o prazer e a revolta criou em mim, naquele momento, um elevado estado de ansiedade.
- Eu pedi-vos que escrevessem uma história, um conto ou uma narrativa qualquer mas... que fossem completamente originais – continuou o professor.
- Mas o que eu escrevi é original! E meu, só meu! E escrevi-o com base nas narrativas que fui ouvindo aos soldados que regressaram do ultramar - respondi. 
- E então quando é que ouviste tudo isso?
- Sei lá... deixe cá ver... não foi só de uma vez... ouvi na Praça, na Avenida e também no velório do filho da senhora Laudomira “forneira” que mataram em Angola!
- Então (!?) e eles contaram-te tudo isso, a ti?... Assim, desta forma? - perguntou ele em tom irónico.
- Não me contaram especialmente a mim... eu fui ouvindo as conversas entre eles... partilhas de experiências de guerra vividas... uma e outra, aqui e ali, nesse dia e nos dias seguintes. Com base nessas histórias que fui ouvindo como intruso e à socapa acabei por construir e redigir todo esse enredo. Também com algumas coisas que inventei para condimentar tudo isso à minha maneira.

- Bom... bom... então lê lá o texto, que dizes ter escrito, em voz alta para os teus colegas o ouvirem bem. E virando-se para dois colegas meus que cochichavam entre si: "vocês ai atrás calem-se e ouçam com muita atenção pois irão ter de comentar no fim"!
(Continua)

sábado, 1 de março de 2014

Chove tanto! E há tanto vento!

Primeiro dia do mês de Março a fazer jus ao provérbio: "Em Março chove cada dia um pedaço"É mais uma manhã de sábado chuvosa e fria. 

Estou farto de tanta chuva. Chove tanto! 

“Vejo” os poucos cabelos que me restam ondular enquanto corro e fico preocupado. Penso continuar a correr e paro. Os pés ficam colados ao chão, enterrados na areia molhada que substitui as tábuas destruídas do passadiço e debato-me nesta luta interior. 

Tanto vento! Estou farto… 

Começo a derrapar na parte em que o piso é mais sólido mas com areia intrusa. Sinto as sapatilhas a caminhar quase de forma autónoma, primeiro devagarinho, depois a obrigar-me a deslizar, como se o passadiço fosse uma das passadeiras rolantes do Gaiashoping. Encosto-me a mim, agarro-me à linha do horizonte, seguro-me neste mar bravio e tento mentalmente contrariar esta tempestade. Os cabelos, já grisalhos e compridos lá atrás, agitam-se enquanto a testa alta, descapotável e enrugada sente o vento e a chuva a bater. O vento empurra-me o corpo para trás ao mesmo tempo que a areia e as folhas mais leves chocam e batem na cara. Esforço-me ainda mais, já me custa manter os pés na areia molhada que escorre… tudo me escapa dos pés como se o mar, que tudo destruiu por aqui, me quisesse levar também.

Chove tanto! E há tanto vento!

Na meia laranja da praia da Granja estou quase a desistir, sinto-me levado pelas escadas abaixo e arrastado pelas águas salgadas em ondas revoltas como um estudante ébrio, e em praxe, na praia do Meco.

Insisto… mas continuo a levar com água na cara e com a areia empurradas pelo vento.

Até que, num momento de maior fragilidade, desisto. Falham-me as pernas e caio de joelhos na areia molhada, como Jesus no Dragão. 

E vejo Espinho lá longe… cada vez mais longe…