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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Percepção estereotipada da vida...

Ainda estudava em Coimbra no início da década de 70 do Século passado.
Nessa noite, já depois do jantar, saí do meu quarto alugado nas águas furtadas, do nº 9, da Rua Ferreira Borges. Atravessei a rua e sentei-me na escadaria que dá acesso à Praça do Comércio, mesmo ao lado da Igreja de S. Tiago.

Aí fiquei sentado enquanto aguardava a chegada dum colega meu, o Carrelo, que ficou de se encontrar comigo. À minha frente estendiam-se os bonitos e característicos prédios que circundavam a Praça. Apreciei cada um deles e reparei que quase todos tinham entre cinco e seis andares, eram relativamente semelhantes na sua estrutura e pareciam alinhados em círculo para admirar a Lua cheia que surgira bem lá no alto do céu, mas que parecia estar alinhada e apontada mesmo ao centro da Praça, que iluminava. Das ruas estreitinhas, que via mesmo em frente (Rua Adelino da Veiga e Rua das Azeiteiras) e que também desembocavam na Praça, não havia quase nenhum movimento de pessoas, ao contrário daquilo que acontecia nas minhas costas por onde passavam, aos pares e em pequenos grupos, fazendo as habituais piscinas (passeio de ida e volta) na Ferreira Borges, ou se deslocavam, enquanto conversavam e viam as montras, aproveitando o bom tempo que se fazia sentir nesse mês de Maio, para a Igreja de Santa Cruz onde iam rezar e assistir ao mês de Maria.

Enquanto os prédios olhavam para a Lua, eu olhava para eles. As luzes interiores davam sinais de vida a um ritmo lento e, das janelas mais baixas, era possível ouvir alguns sons domésticos. Numa ou noutra varanda de ferro trabalhado e bordado viam-se pequenos vasos com flores de sardinheira que lhes davam um colorido diversificado e garrido. As famílias que ali moravam começavam a jantar e eu, sozinho, continuava à espera que o meu colega chegasse. Dei-me conta de que, instintivamente, imaginara a vida de todas aquelas pessoas duma forma estereotipada. Para mim, todas as famílias que ali moravam eram compostas por um casal e um ou dois filhos, com a mulher de avental e o marido a chegar a casa um pouco depois dela, já com o jantar na mesa. Todos discutiam os temas habituais do dia-a-dia, como o tempo, o electrodoméstico avariado, o trabalho e/ou os estudos dos filhos. 
O meu colega acabou por não aparecer e eu, sem perceber exactamente como, fiquei ali até os edifícios se confundirem com o céu agora já escuro e cada uma das minhas famílias estereotipadas adormecer. A verdade é que não dei pelo tempo a passar.

Na noite seguinte saí com alguns amigos e fui ao Bar nocturno Clepsidra, ou “Clep” como lhe chamávamos habitualmente e que era frequentada maioritariamente por estudantes ligados às Repúblicas e ao movimento associativo. Eu gostava muito de lá ir e hoje sei que foi uma das melhores escolas de vida que frequentei. Era um local calmo o suficiente para se poder ter uma conversa (com gente bem educada, culta e inteligente) e movimentado quanto baste para não nos sentirmos isolados. Quando me desloquei ao balcão, para pedir a segunda cerveja, uma mulher - bem mais velha do que eu - e que estava noutra mesa levantou-se e veio ter comigo. Perguntou-me se tinha sido eu a passar a noite anterior inteira sentado na escadaria de S. Tiago que dava para a janela dela. Que sim, respondi, e expliquei-lhe a história toda.

Também ela me tinha visto da mesma forma estereotipada!
Estando eu ali, toda a noite sozinho e sentado ao lado da Igreja, só podia estar apaixonado por alguém que não me ligava nenhuma. Estaria numa de sofrimento, à espera que um milagre se desse e a minha paixão viesse à janela.
- Estava só à espera dum colega que não apareceu... - disse-lhe.
Eu e a Luísa, pois era assim que se chamava, ficámos amigos. Provavelmente, e digo isto sem certezas, vivemos uma amizade tão intensa quanto incomum. Sei que sempre que entrei na casa dela pensei em como a minha percepção da vida naqueles edifícios da Praça do Comércio tinha sido erradaAgora com a visão perceptiva obtida a partir do interior de um deles...
Quanto mais não seja, a Luísa mostrou-me isso, dando-me essa oportunidade. Como eu lhe agradeço e como eu gostaria de lhe retribuir todo o bem que me fez nesse período!

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