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sábado, 5 de outubro de 2013

Conto: Neto de um emigrante em Paris! (XXXV e último)

Estava a trincar, alternadamente, uma maçã que segurava na mão esquerda e um pedaço de queijo Camenbert que tinha na mão direita quando uma carrinha de caixa fechada parou mesmo à sua frente. Saíram de lá um homem de bata branca e uma mulher de avental e lenço também brancos. Contornaram a carrinha cada um do seu lado, abriram em equipa a porta traseira que abria e fechava em forma de livro e retiraram do seu interior um cesto de pães enormes com a côdea tostada e estaladiça. Entraram pela porta principal da estação e reapareceram passados alguns minutos. Ele, calmamente, a sacudir as mãos da farinha. Ela esbaforida e a berrar pelo facto de mais uma vez ele ter vendido fiado.
Quando Zeferino lhes pediu boleia o homem, a quem a mulher chamava de Zequinha, aproveitou o pretexto para acabar com a discussão perguntando-lhe para onde queria viajar. - Está bem, levo-te até Moncorvo se não te importares de fazer duas paragens connosco, uma em Carviçais e outra no Larinho, enquanto vamos distribuir o resto do pão.
Zeferino acomodou-se então no único banco disponível do furgão entre sacos vazios, amarrotados e sujos de farinha. Assim, no seu canto, e à medida que a viagem ia decorrendo, pensava para si que qualquer semelhança entre aquela estrada esburacada, sem separadores centrais, que se serpenteava entre sobreiros, amendoeiras e pinheiros bravos e as modernas estradas de França era uma pura coincidência. Aqui parecia que não circulavam veículos fabricados neste século. A maioria eram camiões, carros velhos, “chaços” que se envolviam numa nuvem de fumo e pó e que produziam um barulho ensurdecedor. O mais curioso é que só agora no regresso a Portugal é que Zeferino se dava conta destes pormenores e os interiorizava desta maneira.
Também em si próprio notava que muita coisa havia mudado. De facto, logo que deu os primeiros passos em Barca d´Alva, sentiu que já não era o mesmo e que tinha regressado mais adulto, mais inspirado e virado para uma vida mais ampla e global… com uma visão mais pragmática e realista do mundo e, em consequência, melhor preparado para ultrapassar esse que seria sem dúvida um dos piores períodos que teve de percorrer e viver enquanto jovem ainda adolescente e, sobretudo, enquanto estudante.
Vinha também mais armado sob o ponto de vista psicológico e moral para superar essa “crise” da adolescência e alguns dos episódios que viveu nessa época e que sentiu de forma intensa, quase dramática. 
Sentiu sobretudo que esta também tinha sido uma viagem ao interior de si mesmo e, ao fazê-la, pode analisar todos os aspectos da sua vida com a mesma visão e viver consigo próprio com maior honestidade, sem receios, nem medos, nem preconceitos. Esta viagem ao interior do seu âmago assim dessa forma tão saudável permitiu-lhe enfim uma melhor aceitação de si mesmo e melhorar o seu auto conceito e auto estima.
Prometeu a si próprio que nunca mais iria ter um fracasso nos seus estudos. Iria estudar e aplicar-se como nunca o tinha feito até aí. Nunca mais iria reprovar em qualquer exame que tivesse de fazer como, infelizmente, já lhe tinha acontecido em duas situações anteriores. Assim, com esta auto confiança adquirida nunca mais iria baixar os braços e não deixaria que as dificuldades dessem cabo da sua alegria de viver. 
Habituar-se-ia a não gastar os seus dias com queixas e lamentações e (re)aprenderia a viver sem algumas das coisas a que achava que tinha direito e, entretanto, lhe foram retiradas, ganhando com isso a possibilidade de desfrutar de outras ainda com mais potencialidades. 
Aprenderia ainda a olhar para as pessoas, para os objectos, para os sítios, para os acontecimentos, com outros olhos, com outro sentido de descoberta.
Prometeu ainda a si próprio que, porventura, deste período negro sairia mais forte e com mais capacidade de conseguir ver o lado positivo da vida mesmo quando tudo parecesse cinzento e nublado.
Assim imbuído nestes pensamentos mal se deu conta da viagem e quando deu por si já estava em Moncorvo.
No centro desta bela localidade de Trás-os-Montes, mesmo em frente à Câmara Municipal, e com surpresa, viu um carro aí estacionado que conhecia muito bem, o Nissan 240Z, novinho em folha, do Dr. Silva, veterinário de Vila Flor e seu professor de Geografia no Colégio de Santa Luzia. – Viva! Já está! Já tenho boleia até casa. Agora é só esperar que o Dr. Silva regresse ao seu carro, pensou com regozijo.
O Dr. Silva chegou, deu-lhe de imediato boleia mas ralhou-lhe por ter faltado às aulas durante a primeira semana desse terceiro período. Só ficou mais calmo depois de Zeferino lhe ter contado que durante os primeiros três dias dessa semana tinha estado a cumprir o tal castigo aplicado pelo Padre Cassiano e - sobretudo - as circunstâncias injustas que o motivaram. Depois de ter perguntado se tinha sido mesmo assim que tudo se tinha passado acreditou e pareceu até ter ficado solidário com Zeferino. Fizeram os vinte e cinco quilómetros que separam Moncorvo de Vila Flor de forma muito agradável, bem dispostos e a rirem-se das peripécias ocorridas durante a viagem e que Zeferino foi relatando com prazer.

Alguém disse que a vida é uma viagem  a três estações: acção, experiência e recordação. 
Zeferino podia afirmar com toda a certeza de que esta tinha sido a viagem da sua vida em que não faltou nenhuma dessas estações…

FIM

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