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sexta-feira, 5 de julho de 2013

Conto: Neto de um emigrante em Paris! (XXVII)

Zeferino chegou a Bordéus cansadíssimo. Despediu-se, agradecendo a boleia ao motorista Ricard e ao pai de Lille e foi caminhando, de mochila às costa, pelo centro da cidade, até que se sentou num dos bancos do Jardin Botanique, mesmo em frente da Bibliothèque du Jardin Public e do Muséum d'Histoire Naturelle de Bordeaux e muito perto do Rio Garonne.
Entretanto, já deitado ao comprido no banco, uma rapariga veio ao seu encontro e disse-lhe: - Olá, estás à procura de sítio para ficar? Conheço um sítio muito barato onde poderás descansar muito melhor do que aqui neste banco.
Apesar de não ter planeado tal coisa, decidiu aproveitar a ocasião e respondeu: - Sim, por favor.
Depois de entrar no pequeno quarto, que não ficava muito longe dali, deitou-se na cama e adormeceu de imediato.
Acordou inesperadamente muito antes do que esperara tendo em conta aquilo que o corpo lhe pedira antes de adormecer profundamente.
Ainda sentia a cabeça pesada da jornada anterior (mais de 24 horas sem dormir) e voltou-se demoradamente para o outro lado sentindo o corpo dorido sobre a lisura dos lençóis. Tornou a fechar os olhos voltando a abri-los lentamente numa fina faixa, apenas a linha que liga o sono ao despertar, por onde observava as lâminas de luz que das persianas traziam fatias quase imperceptíveis do dia para dentro do quarto.
Durante os minutos soltos da semi-vigilia, apontamentos vagos, meros fragmentos dos acontecimentos do dia anterior passaram-lhe diante dos olhos.
Rodou o corpo na cama, olhos novamente fechados, arrastando a lembrança incómoda da forma como deixou ir Emeralda e o desespero que então lhe havia tomado todo o ser quando se afastara a fugir e dos dias seguintes em que tudo fizera para dela se esquecer. Por tudo isso e já cansado, num salto em frente e para largar a fogueira de mágoas daquela paixão, se deixara ir com Luísa qual fantoche manobrado pelas mãos de Lille.

Levantou-se, subiu um pouco as persianas afogando em luz o quarto, remetendo os pensamentos para as fronteiras das memórias distantes … lá longe em Vila Flor. E pensou… pensou muito!
Pensou no seu professor de Inglês (que detestava) e que do alto da sua integridade moral, logo que soube do seu namoro com Lena se transformou em polícia fazendo-lhe uma perseguição implacável, quer no Colégio, quer fora dele. E que, a certa altura, teve o desplante de ir dizer ao pai dela que essa relação estava a ser muito prejudicial para ela, que a desconcentrava e que poderia vir a diminuir o rendimento escolar, que até aí tinha sido exemplar.
Pensou ainda no pai dela, que era também guarda nacional republicano (GNR), e recordou o dia em que veio ter com ele no momento em que se encontrava a conversar com um amigo na Avenida Marechal Gomes da Costa e lhe perguntou, num tom autoritário e agressivo:
- Ouve lá, parece que andas a namoriscar com a Lena, é verdade?
Zeferino, tentando aparentar muita calma respondeu-lhe: - e porque me pergunta a mim? Não é melhor perguntar-lhe directamente a ela?
- Olha! Olha-me este! Armado em esperto comigo, é!?
- Não Sr. Sousa, o que acho é que não devo ser eu a dizer-lhe. Deve conversar com a sua filha e ela com certeza dir-lhe-á a verdade! 
- Com ela já eu falei! E de que maneira! A ti só quero avisar-te que se porventura algum dia te encontrar com ela vou correr-te a pontapé! Ouviste? Perguntou com ar ameaçador enquanto o seu colega de patrulha sorria com ar cínico e zombeteiro.
- O senhor está a falar-me como pai dela ou como GNR? Perguntou-lhe Zeferino.
- Porquê?! 
- Porque se me está a ameaçar como cidadão e pai dela então terei de lhe responder e agir do mesmo modo; ao agente de autoridade não posso responder, embora o senhor, enquanto tal, também tenha a obrigação de ser correcto comigo.
É bom lembrar que estávamos no tempo da ditadura e num tempo político em que alguns agentes de autoridade, GNR e PSP, impunham a sua lei à base da força física, sem assegurar os direitos mínimos dos cidadãos.
Recordou ainda que depois desta conversa esteve sem ver e falar com a Lena durante uma semana. O pai dela bateu-lhe tanto e de tal maneira que ela teve que ficar em casa durante sete dias para recuperar dos hematomas e das dores físicas e psicológicas infligidas.
A partir dessa altura passaram a comunicar através das mensagens escritas num caderno de capas pretas, que deixavam entregue, em mão, ao Toninho proprietário da Papelaria Académica. O Toninho era cego mas muito amigo, confidente e conselheiro de Zeferino. Foi o único que o apoiou. Foi também o único a ver como esse namoro era puro e genuíno. Ele recebia o caderno de um e só o entregava ao outro, que por sua vez respondia à mensagem e o voltava a deixar.
Houve um período em que também se encontravam à noite, por volta das vinte e uma horas, quando a Lena vinha à porta de casa receber a Leiteira, que era uma senhora que andava com um cântaro de latão, de porta em porta, a vender leite de ovelha ao quartilho. Zeferino ficava escondido até ela medir o leite e depois de se ir embora lá ia ele namoriscar uns minutos, poucos, mas preciosos.
Numa dessas noites, já em pleno Inverno, estavam a conversar bem no interior do jardim da casa dela. No instante em que ela lhe dizia que fugiria com Zeferino de casa dos pais se ele quisesse e a levasse, o cão dela, o “Rápido”, começou a mexer muito o rabo e as orelhas, dando sinais claros de que o dono se aproximava.
- Foge! É o meu pai que está a chegar! Disse ela muito aflita.
- Mas para onde? Se fujo para o portão da casa até lá o teu pai pode entrar!
Então, sem outra alternativa, Zeferino entrou rapidamente para o galinheiro que tinham construído mesmo debaixo de uma grande cerejeira, enquanto ela se recolhia para dentro de casa. Escondeu-se num dos cantos mais escuros e fundos do galinheiro, mas de forma tão desastrada que algumas galinhas se assustaram e começaram a fazer barulho, batendo com as asas.
Tudo isto no momento em que o Sr. Sousa entrava pelo portão, se apercebia do barulho anormal vindo do galinheiro e dele se aproximava perigosamente!
Zeferino continuava encolhido, sujo, cheio de frio e.. de medo! O “Rápido”, com saudades do dono, a correr do galinheiro para o portão e do portão para o dono, distraindo-o mas não o impedindo de continuar o seu caminho até ao galinheiro para ver o que se passava.
Até que, talvez por influência da estrela polar, saiu de casa a mãe da Lena e o salvou da situação perigosa em que Zeferino se encontrava, berrando:
- Rápido! Que fazes? Pára! Deixa as galinhas em paz! E, virando-se para o marido exclamou admirada: Tu!? Então já vieste hoje? Pensei que o teu turno só acabava à meia-noite!
Logo que entraram para o interior da casa Zeferino saiu do galinheiro muito lentamente e com todo o cuidado para não assustar de novo as galinhas.
Zeferino recordou ainda a última noite em que esteve com Lena neste mesmo local. Os seus beijos sabiam a caldo verde! Mas sabiam tão bem! Enquanto ela lhe dizia: - Vês aquela estrela? A que brilha mais? Virando-lhe o rosto e o olhar para a estrela polar! É com ela que eu falo quando tu não vens ver-me.

De repente Zeferino acordou para a realidade regressando ao presente,  tomou um duche rápido e, esfomeado, saiu para a cidade…
(continua...)


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