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quarta-feira, 25 de julho de 2012

Memória III: A Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian

É um facto que tenho andado mais virado para a pintura de todo o interior da casa do que para escrita, o que me fez cometer o pecado de andar também mais distante da leitura e até um pouco esquecido desta coisa fantástica que é o bloguismo.
Apesar de normalmente ser um leitor incaracterístico, inconstante, intercalar e variado, sou também um apaixonado e entusiasmado pelas ideias, pelas emoções e pelas revelações que encontramos nas páginas bem escritas de um livro.
E, lá está!... Este gosto pela leitura começou bem cedo, lá longe no tempo e no espaço, no início da década de 60 e… em Vila Flor!
Ainda me recordo que, de quinze em quinze dias, normalmente às quartas-feiras, na Praça da República, estacionava em cima de um largo passeio, mesmo em frente à Casa Africana, um furgão-carrinha Citroen de cor cinzenta, que tinha escrito com letras trabalhadas a preto num fundo branco: Fundação Calouste Gulbenkian-Biblioteca Itinerante. 
Essa carrinha tinha duas portas na parte traseira que se abriam de par-em-par e uma parte superior que abria para cima, para dar acesso ao fantástico mundo dos livros. No seu interior, o Senhor Manuel Curto recebia-nos sempre com um sorriso nos lábios. Ele era  muito mais do que o motorista que conduzia a carrinha onde eram transportados os livros. Era também o bibliotecário que exercia um papel de orientador pedagógico pois tinha a perfeita noção da importância da leitura infantil no desenvolvimento da compreensão da criança leitora e da passagem gradual que requer o encontro progressivo com a obra literária.
Quando se entrava pela primeira vez na carrinha e se dava de caras com o Senhor Manel era certo que, mesmo antes de perguntar pelo nome ele perguntava: que idade tens? Em que classe andas? Só depois ele preenchia a nossa ficha de leitor à medida que nos fazia as perguntas necessárias. 
Só depois de definir muito bem o nosso perfil social, cultural e económico (morada, profissão dos pais, tipo de casa onde vivíamos, irmãos, hábitos de leitura dos diferentes membros do agregado familiar, etc.) é que ele nos conduzia à prateleira com os livros que entendia serem - naquele momento - os mais adequados.
Já nessa época ele tinha a noção exacta de que os diversos níveis de leitura devem ser progressivos, para que, à medida que são atingidos, se obtenha um maior gosto pelo acto de ler.
Ele sabia que num primeiro nível, é importante escolher o texto com o qual a criança vai entrar em contacto. Deve ser adequado à idade, à sua cultura e aos seus interesses. O primeiro sentimento que a criança deve ter em contacto com o texto é o prazer.
Depois de lermos os livros que inicialmente nos indicava e depois de lhe confirmarmos que tomámos consciência daquilo que acabámos de ler ele então deixava que fossemos nós a escolher os seguintes. E assim orientados passavamos da compreensão dos textos para a distinção entre o mundo real e  o mundo dos sonhos e da ficção.
Os mais assíduos e constantes na frequência da biblioteca íamos ultrapassando os vários níveis de leitura desde a simples leitura, à compreensão de textos e à posição crítica perante o que se ia lendo. Para além de satisfazermos a fantasia, íamos criando um mundo rico em possibilidades recreativas e gratificantes, dando entrada aos interesses morais, sociais e técnicos, disfrutando agradavelmente da leitura em função da idade.
Para os miúdos dessa época este serviço que nos foi prestado teve, de facto, uma importância inestimável na aquisição de hábitos de leitura, tendo em conta que não havia outro tipo de bibliotecas e não havia dinheiro para comprar livros. Esta ideia genial de levar os livros a todas as vilas e aldeias rurais de Portugal foi de Branquinho da Fonseca e teve início em 1958.
Eu desfrutei deste serviço de 1961 até 1969, ano em que passei a frequentar a Biblioteca do Museu Municipal Berta Cabral-Vila Flor, devidamente apetrechada pelo seu Director Senhor Raul de Sá Correia a quem presto aqui a minha homenagem pelo excelente trabalho que aí desenvolveu durante várias décadas.


Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.

Castro Alves

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